Esse texto é parte de um projeto de pesquisa pessoal da minha amiga Larissa Ramalho, que investiga a experiência metafísica de sua avó e seus laços humanos e terrestres com a terra - a que pisa e a que já pisou. Ofereci a newsletter como plataforma para compartilhar essa primeira parte, e espero que esse texto os toque como me tocou. Se vocês forem ler um texto daqui, pra nunca mais, que seja esse. Sem mais delongar, Uma Constelação de Mangueiras:
A mangueira é uma árvore imensa. O tronco grosso, os galhos espalhafatosos, a sombra generosa. Os pés dessas mangueiras se estendem numa sombra no chão de terra batida à minha frente, me protegendo do sol. Olho pros meus pés pequeninos, as havaianas um pouco surradas, o short vermelho folgado. Sem blusa, aos quatro anos, tentando me esquivar do calor enquanto o corpo não saísse daquele limbo que confunde os adultos e as crianças - é menino ou menina? Menina, anunciam minhas orelhas furadas, e seguro na mão um copo metálico, cheio de um líquido gelado, enquanto observo a rede estendida entre os galhos daquelas mangueiras. Sinto a umidade misturada à poeira na minha pele macia, o gosto sintético de uva misturado ao sabor metálico do copo que lembra a sensação de um garfo vazio e gelado encostando na nossa língua, o sono misturado ao conforto de ver o peso daquele corpo que traz a rede levemente para baixo. Sempre gostei de ver a rede adotando o formato de quem se deita nela. Tem armador ao redor da casa inteira, e não é incomum vê-las penduradas por aí. Quando alguém se levanta pra pegar água, lavar louça ou ir atender o chamado de algum adulto, eu logo me apresso pra me jogar e me fechar na rede, criando um casulo enquanto viro o corpo, empurrando pra baixo com toda a minha força. Separo o tecido um pouquinho com as mãos, o suficiente pra deixar só a minha cabeça de fora. Desse jeito eu consigo ver o chão e sempre me espanta a diferença de percepção entre estar de cabeça erguida, na vertical, e a visão que nasce de um olhar na horizontal, puxado pra baixo pela gravidade que puxou pra baixo o corpo, em primeiro lugar. O corpo e a rede, que agora adotou o formato do meu corpo de cabeça pra baixo. Desse jeito eu me sinto um ser mágico, protegido e poderoso, e se a minha mãe está por perto eu peço pra ela me balançar. Quando é ela quem está deitada na rede, eu gosto de escalar até o topo, onde ficam os fios de amarração que nos sustentam acima do chão. Dali eu consigo perceber o conhecimento sutil que vem da prática de dar nós nesses fios pra levantar ainda mais a rede. Às vezes o espaço é pequeno ou o tecido da rede é grande demais e o fio precisa ser diminuído; daí a necessidade dos nós. Sempre deram os nós no meu lugar e ainda hoje eu não aprendi direito como fazer pra que eles não se desamarrem sozinhos. Ao escalar os fios, eu me sinto escalando uma árvore. Como uma mangueira, mas com minha mãe embaixo, às vezes rindo, às vezes me dizendo pra tomar cuidado pra não cair. Quando ela sugere essa possibilidade, eu dou uma suspirada, faço um som com a boca que hoje sei se aproximar de um deboche que só quem tem uma segurança muito grande sobre o que faz é capaz de dar. Nos últimos meses eu não tenho feito esse som, mas ele existe dentro do meu peito, pronto pra sair, guardado numa bolota que às vezes sobe até o alto da minha garganta, nas amígdalas, onde tenho dor de vez em quando, para por ali e volta rapidinho pra baixo. Nesse movimento de retorno, sinto que ele passou do ponto quando vai direto pro meu estômago, que se embrulha, como se o menor dos redemoinhos tivesse começado a se armar bem naquela região.
Essas imagens estão na minha cabeça, mas é como se elas se apresentassem diante de mim, como se eu não estivesse sentada num auditório semi lotado, vendo uma palestra que não me interessa tanto assim, numa Universidade a três mil quilômetros de distância da casa das mangueiras e das redes, uma casa onde nem as redes, nem as mangueiras existem mais. As paredes, os telhados, os cômodos continuam, mas ela não é mais uma casa. Tem algo de estranho em toda essa memória, algo que tem acontecido nos últimos dias, mais ou menos uns 35, e essas imagens se repetem e mudam de vez em quando. Tem dias que estou acompanhada de uma bicicletinha rosa, olhando pra rampa e sentindo medo de avançar. Pensando bem, sempre tive um pouco de medo de cair, embora nunca tenha tido medo de altura. Eu sinto mais medo de cair quando estou próxima do chão. Os lugares altos me dão um certo conforto, nunca entendi bem, mas agora, parando pra pensar, é porque em uma certa altura, se eu suspirar fundo, logo encontro um cheiro de manga madura. Aqui, no auditório, de pernas cruzadas, mais ou menos da mesma altura que as pessoas sentadas ao meu redor, não tem cheiro de manga, faz tempo que não vejo uma manga, aliás, e ouço vagamente o professor falar da importância de ouvir os mais velhos e registrar essas histórias, que as lutas meio que se repetem, e a grande novidade é encontrar o fio que liga todas essas lutas. Existe uma frequência, uma regularidade nessas lutas todas, se a gente descrevê-las suficientemente bem, talvez as pessoas consigam se entender, a gente consiga entendê-las de volta, e aí, da compreensão mútua talvez nasçam outras coisas, talvez não. Essas últimas partes não foram ditas pelo professor, eu tive uma conversa dessas com ele um tempo atrás, a gente meio que pensou nelas junto. Se vocês querem saber a minha opinião, acho que a luta mãe de todas as outras lutas é a fundiária, o direito à terra, o direito ao retorno, o direito das casas continuarem tendo mangueiras e redes, e a gente não precisar procurar incessantemente a altura ideal que faz subir o cheiro da manga madura.
Sinto que tem um ponto fundamental pra essas imagens surgirem do nada, evocando uma infância distante. Eu sei disso, esse ponto fundamental tem estado sempre no fundo da minha mente, mesmo quando estou dando aula, conversando, pensando em alguma receita pra tirar do papel. Esse ponto me ronda e às vezes me agride, e bem nesses momentos a bolota da absoluta segurança parece parar de existir, e é substituída por algo muito mais gutural, quase um som abafado. Geralmente eu tento contê-lo, ninguém gosta de ouvir esse tipo de som, parece muito uma lamentação, mas acho que é só a prova de que a minha avó existiu por muito tempo, 90 anos e seis meses no total, e todo esse tempo é mais do que a maioria consegue, quer ou tem direito, mas nem todo esse tempo, que dá mais de trinta mil dias, parece ter sido suficiente. Pra ser justa, eu não tive direito a vê-la ou ouvi-la durante esses trinta mil dias, nem durante a totalidade dos quase dez mil em que estive viva, e algo me diz que eu devo rastrear essa diferença, esses mais de 20 mil que nos separam. Se eu conseguir juntar esses dias, se eu conseguir narrar essas horas, talvez eu ouça a voz dela mais uma vez, e dessa vez fora da minha cabeça, não mais dentro dela, como tem sido no último mês.
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Se eu for completamente sincera, não sei bem por onde começar. Primeiro tive a ideia de tentar seguir essas memórias, deixá-las fluírem, e isso me dá um certo conforto porque as imagino como uma nuvem rosa, parecendo um algodão-doce, mas mais translúcido - transparente de um jeito que tornaria impossível serem amarradas num palito, num fio ou em qualquer lugar. Por esse lado, a impossibilidade de prendê-las poderia ser bonita, não fosse minha vontade de controlar e descrever tudo, se eu não correr com isso talvez elas escapem e sabe lá o que vai acontecer se uma pessoa desavisada acabar topando com elas por aí. De todo jeito, isso me dá ânimo pra continuar, mesmo quando aquele som animalesco quer se soltar do meu peito. O problema continua, talvez só seguir as memórias mentalmente não seja suficiente e eu tenha que planejar algo, colocar uma fisicalidade no processo, torná-lo empírico. Empiria é uma palavra difícil, demorei muito pra conseguir entender de fato o que significa, nem sei se entendi mesmo, tenho essa dúvida sobre várias coisas, mesmo quando eu dou aula sobre elas e supostamente sei exatamente do que estou falando. Esse desejo de saber de tudo, de entender perfeitamente algo que só existe na cabeça dos outros me acompanha há muito tempo, mas já desisti de realizá-lo. É impossível entender o que as palavras significam de fato, elas existem igual as minhas memórias, flutuando, não dá pra prender, muitas vezes a gente acha que controla, mas, na minha experiência, as palavras surgem, meio que vão se agitando e se sobrepondo, quando você vê já foi, e isso pro bem e pro mal. As coisas não, elas existem, a gente vê e a gente toca, dá pra empurrar de volta e fazer caber em um elevador. As palavras também existem, mas de um jeito muito superior, elas são inalcançáveis, e o engraçado ou dramático é que elas se materializam na nossa frente. Não dá pra tocá-las, mas elas acabam se tornando reais quando alguém chora por algo que ouviu ou leu, quando uma música em uma língua que você não conhece faz sentido, quando você tenta aprender essa língua por causa dessa música e desiste porque ela nunca vai conseguir descrever as coisas como a sua língua materna, foi só aquela música mesmo, e talvez tenha a ver mais com a melodia do que com as palavras. Mesmo assim, tendo comprovado o poder da melodia, sigo achando as palavras muito maiores, talvez os linguistas concordem comigo. Quer dizer, eu sinto que elas são maiores, então elas são mesmo. Voltando à empiria, eu finalmente entendi que tem a ver com experiência, com o corpo, mais do que com a lógica, e acho que é isso que estou exercitando agora, sentada no meu quarto, tudo escuro não fosse o abajur que liguei quando meu celular apitou com uma chamada em vídeo da minha mãe. Tive que ligar a luz porque ela não ia conseguir me ver, eu estou sentada aqui há algum tempo e o sol já tinha caído, e só esse processo já tornou o ato de escrever essas linhas extremamente empírico: mandei pra ela as primeiras três páginas e ela me retornou uns minutos depois, chorando, falando coisas que só quem já viu as mangueiras, as redes e a minha avó poderia falar. Essa reação é mais uma prova de que as palavras são superiores às coisas, elas criam realidades, evocam o passado, e os nós dos fios começam a desamarrar, dessa vez porque eu quis, e não porque eram frágeis ou porque deitei de supetão na rede.
Eu queria ter uma rede aqui em casa, mas não tem espaço. As paredes já estão cheias de outras coisas menos importantes, tenho que pendurar a bicicleta em uma delas porque lá embaixo não tem lugar. Aqui no Rio é tudo muito caro, o meu prédio não tem nem bicicletário, me fazendo prender duas mãos francesas na parede pra apoiar minha bicicleta, que agora não é mais rosa, é preta, e mesmo assim, sem bicicletário nem nada, só o condomínio custa quase um salário mínimo. Os meus vizinhos e quem me vê na rua não imaginam de onde vim, do lugar mais úmido e quente do Brasil, e quando me viam de mãos dadas com minha avó só conseguiam captar o laço sanguíneo pelo absoluto calor familiar que emanava da cena, minhas mãos sobre as mãos dela, às vezes abraçando-a pela cintura ou fazendo cafuné nos cabelos finos, tão finos que eram lavados com shampoo de bebe. O cheiro daquele shampoo famoso nem é mais de bebe, é de Dona Ilma, e acho que a empresa deveria começar a colocar fotos dela nas propagandas. Só a foto não ia dar conta, é verdade, seria necessário olhar fundo nos olhinhos miúdos, tão diferentes dos meus, meio azulados por conta da catarata, mas ainda espertos e muito brilhosos. A pele debaixo deles também foi afinada pelo tempo, dava um pouco de vontade de encostar pra sentir a textura enrugada, parecida com a testa da mão dela, com os dedos igualmente finos, cheios de anéis. Os meus favoritos, no anelar, a aliança de casada e a aliança de viúva, anunciando um ciclo completo. Ela sempre mexia nesses dois aneis, talvez tentando tocar essas mesmas memórias que argumento serem fugidias. Talvez pra ela essas memórias estivessem ainda mais escorregadias, e o toque sempre acalma, afinal de contas. Eu via a confusão nos olhinhos azulados e miúdos, especialmente quando ela olhava pra um ponto fixo à sua frente por tempo demais, até que comecei a me demorar nesse ponto também, tentando sustentar essa olhadela, mas a visão começava a embaçar e me dava um pouco de angústia. Nesses momentos eu entendia a distância entre nós, mas tentava nunca deixá-la crescer demais, fazia carinho na sua mão e perguntava se ela queria um cafézinho. Ela tornava o olhar pra mim e sempre dizia gostar do que via, falando do comprimento e espessura dos fios do meu cabelo. Quase sempre aceitava o cafézinho e me pedia pra exagerar no açúcar, o que eu prontamente recusava, colocando só uma colher rasa. É claro que o processo não acabava por aí; o ato de provar era acompanhado por uma careta carregada, a língua pra fora e os olhos meio revirados, com a emissão de um som de absoluto horror pelo amargor do café semi-adoçado. Todo esse ritual acontecia também quando provava um suco, e um dia, almoçando com a minha mãe, ela me disse que no próprio nome do suco já contém a palavra açúcar, “é açucor o nome”, e ela talvez não tenha se dado conta, mas criou um mundo só nosso. Só nós três conhecíamos essa palavra, até contei pro meu melhor amigo algumas vezes, pronunciando orgulhosa, é açúcor, Pedro, mas ele sempre se esquece e ri com a mesma intensidade da primeira vez. Sinto que narrar essa história também cria mundos, quero que mais pessoas conheçam essa realidade na qual o suco é extremamente doce por natureza, que só é extremamente doce porque minha avó prefere assim, e eu consigo entender exatamente o tom e a profundidade dessa doçura. Completei esse entendimento duas semanas atrás, anos depois dela ter proferido essa palavra e criado esse mundo, e a essa altura a voz da minha avó já existia só na minha cabeça, mas o importante é que o entendimento se completou porque eu li um texto sobre o paladar compartilhado dentro de um mesmo grupo social. Sei que às vezes uso esse termo impunemente, grupo-social, já se tornou um chavão, minha língua gosta de encostar no céu da boca ao falar gru, mas nesse contexto estou usando da maneira correta, isto é, pra designar um conjunto de pessoas que se relaciona a partir de uma teia de conhecimentos, interesses e/ou costumes em comum. Pode ser um grupo étnico, religioso, familiar, e o texto se referia aos costumes alimentares de uma família de imigrantes. Os costumes ditos tradicionais só se realizavam na hora das refeições, porque nesses momentos era permitido o retorno à uma religião já adormecida ao provarem as comidas típicas, nomeando-as na sua língua materna. O interessante é que a avó dessa família começou a escrever as receitas, mas não dava muitas instruções; isso indicava um paladar compartilhado. Cada “a gosto” escrito à mão era a prova de uma realidade que só fazia sentido porque era vivida coletivamente, e esse coletivo entendia, como que por instinto, o salgado, o azedo e o amargo sobre o qual a avó falava. Nenhuma medida em mililitros ou em gramas é capaz de trazer a força do “a gosto”, nesse caso; eu nunca conhecerei o azedo daquele biscoito, mas eu chorei lendo essa receita, porque naquele momento eu entendi mais do que o significado das palavras, porque tive a realização que acontecem poucas vezes nessa vida, a de compreender absolutamente o que estava sendo dito. A gente nunca sabe o motivo do nosso próximo choro, mas nesse dia eu chorei porque percebi que existe algum compartimento na minha cabeça dedicado a saber o tanto de açúcar que minha avó gostava no café ou no suco. Não tenho religião e minhas origens não são completamente rastreadas, quando me perguntam eu só digo que sou neta de cearense, mas o que eu queria dizer mesmo é que sou do mundo no qual existem açúcores. Nesse mundo os grãos de café são torrados junto à quadradinhos de açúcar, as pessoas colocam sal na manga pra comê-las, as redes são estendidas entre os galhos das mangueiras nas quais brotam essas mesmas mangas. Eu entendi esse texto porque durante a minha vida não consegui entender quase nada, mas vivi sob a névoa do entendimento profundo de que era neta da minha avó.
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Acho que está posta a minha vontade: rastrear a voz da minha avó e ver até onde ela me leva. Algo me diz que ela está aqui perto; algo me diz que terei que viajar pra longe pra completar essa tarefa. Narrar esses vinte mil dias que nos separam parece urgente, as memórias parecem estar cada vez mais apressadas, e desvendar o tempo é o mais imperioso e difícil dos trabalhos. O calor e o cheiro da manga madura vão ser meus companheiros, enquanto os olhos miúdos e azulados me seguem, sabendo reconhecer de longe meu riso contido.
o cheiro de manga, o balanço da rede, o barulho da rasqueada do quintal, o cheiro de frango cozido misturado com farofa, o barulho de carangueijo cozido consumido até a última puxada pela boca, muitas memórias da casa das mangueiras rodeada de ganchos de redes... lindo texto, vc me fez reviver memórias que levarei comigo pela vida inteira.
que texto lindo!