Faz um tempo que o Youtube assumiu, pra mim, o lugar da agora culturalmente finada TV. Não me refiro a TV aberta - a Globo segue firme e forte na casa de milhões - mas ao processo de zapear os canais e deixar algo passando na TV, sem compromisso de atenção. Quando era mais novo, essa viagem pelo que a grade tinha a oferecer me encantava: lembro dela, inclusive, impressa em alguns almanaques e coladas em algum móvel no antigo apartamento. Quanta coisa acontecendo ao mesmo tempo! E quanto tempo pra ver um pouco de tudo. Me tornei curioso e interessado graças a combinação de ofertas visuais, todas indiferentes a mim, começando e acabando sem qualquer ordem, como alguém que espia dentro de uma sala de cinema já durante o filme. Encontrar algo que nunca havia visto antes e parar pra vê-lo, sem dúvidas, moldou parte da minha pessoa
Com recém-completados 30 anos, escrevo em um laptop, do sofá do meu apartamento, enquanto vejo speedruns (modalidade aonde o jogador deve zerar o jogo no menor tempo possível) da série Dark Souls. Não estou prestando atenção (entre outras coisas, escrevo esse texto), mas já conheço o jogo o suficiente pra não precisar. Minha vida também mudou drasticamente. Dificilmente tenho o tempo de explorar, e a mudança desse sistema de canais simultâneos pro streaming nos colocou em uma posição mais ativa que pouco me agrada. Eu prefiro entrar em uma sala com o filme passando do que escolher o filme eu mesmo.
Voltando a Dark Souls, uma das mecânicas consagradas pela série é a das bonfires: pontos de descanso para o jogador, onde sua vida é regenerada e os inimigos mortos também são revividos. Enquanto você está sentado ali, não há risco de ataque e você pode, enfim, descansar, uma vez que o menu de pausa do jogo não pausa o jogo de fato, apenas coloca um menu em cima da tela. Um sistema milenar, ancestral; o sentimento de segurança em volta de uma fogueira nos acompanha desde antes de sermos nós mesmo. Qualquer que seja o ponto onde arbitrariamente colocamos o ponto de “humanidade” e “civilização”, já se descansava. Não é uma prática que inventamos, mas sim que nos inventou.
Agora que descanso tão pouco, deixo os vídeos do youtube rodando. Muitas vezes não quero ver nada, não quero estímulos, mas preciso deles. Não sei mais como descansar, e nem como querer isso. Não é algo particular, pelo contrário: o que nos fazia descansar em fogueiras também migrou pro digital. E assim, também migraram as fogueiras.
No youtube, é possível encontrar inúmeros vídeos que buscam reproduzir essa dinâmcia dentro das funcionalidades da plataforma. Geralmente são longos, com mais de uma hora, tendo as vezes uma única longa música ou um compilado, todos com textura contemplativa e instrumentais serenos e medidativos. Os títulos variam dentro dessa temática, mas a grande maioria aponta para a própria função: descansar: “Descanse, guerreiro”, “Descanse, viajante”; ou alguns mais elaborados como “Você não está deprimido, só está cansado”. As imagens que ilustram esses vídeos são extremamente cativantes: guerreiros em armadura completa deitados no chão, ou no pântano, sentindo o sol e o vento, sem se mexer.
Confesso que já fiz usso desse sistema. Já cheguei exausto e minúsculo em casa, depois de um dia de trabalho puxado. A rotina dura e nada particular tem um efeito de introspecção de certas angústias; não vale a pena dizê-las ou chamar atenção para elas por já serem presentes na vida de qualquer pessoa. Assim, não há tempo para descanso. Apesar de achar pretensioso, acabei me deixando levar por esse mecanismo piscológico e descansei, até me imaginando como o guerreiro deitado na grama, verde-clara pelo sol.
O processo do descanso é ainda mais eficaz no mundo moderno porque tem sua finitiude declarada logo de cara. Em nenhuma das imagens o viajante/guerreiro está em casa, ou em algum contexto familiar e seguro. O descanso é por natureza temporário, o mundo em volta segue hostil e exaustivo, e também segue como o único caminho possível. A fogueira dura enquanto o fogo queima, e será apagada pela manhã, para a jornada (ou guerra) recomeçar. Essa natureza cíclica é confortante, fortificadora, e perigosa, dentro dessa analogia. Mas os perigos não estão lá fora, mas na própria visão de si dentro desse contexto.
Descansar todos precisamos, mas não me escapa o público para quem essa fantasia é direcionada. Dentro desse catálogo, é basicamente impossível de encontrar, por exemplo, uma representação feminina do guerreiro/viajante. Claro que pode ser uma mulher dentro de qualquer armadura, mas o teor da narrativa que o envolve tem um aspecto masculino muito definido no que diz respeito as narrativas contemporâneas de masculinidade — A solidão é um dos pilares dessa terrível e esmagadora visão. O guerreiro está sempre sozinho, as vezes ferido, mas sem qualquer apoio ou companhia (alguns utilizam animais como lobos ou seres místicos, mas nunca uma pessoa). O martírio reverbera ainda mais forte com narrativas masculinas religiosas, com a idéia do sacrifício silencioso, de quem sofre sem compartilhar e sem a ajuda de ninguém. O momento de descanso com esse imagético “medieval” também acaba por reforçar narrativas épicas sobre si — o que precede e sucede o momento não é de similar tristeza ou solidão, mas de propósito e até violência.
Por fim, e mais importante, a voz divina. O título desses vídeos tem um teor santo de absolução. Se estão sozinhos, de quem vem a ordem do decanso? De amigos? De uma rede de apoio? Não, de algo superior. A metalinguagem nos coloca dentro do guerreiro e o título é a ordem que ele acabou de receber dos céus, o liberando de seu fardo absurdo e impossível, mesmo que brevemente.
Na realidade, e acredito piamente nisso, não somos guerreiros. A visão de si nesses moldes, por mais que acalente o coração, acaba por isolar. Se você se enxerga como um guerreiro solitário e ferido, cujo descanso foi permitido pelo mesmo Deus que te obriga a lutar, descansar nesses moldes será sempre possível, mas obrigatório mesmo será lutar, e lutar sozinho. Seja contra si, seja contra algo ou algúem, não haverá espaço na fantasia para uma outra pessoa para dividir as dores com você, que transforme sua dor em algo a ser sentido e curado coletivamente. Quem embarca nessa narrativa sem os equipamentos pra processa-la acabam por se definir pela dinâmica, sem perceber que sofrem exatamente por se verem nela.
Descansar pode ser um pequeno respiro em meio a violência, mas começa com um olhar carinhoso sobre si e principalmente sobre a própria agência dentro de quaisquer que sejam as terriveis circunstâncias da vida.
Ótimo texto! Justamente por essa necessidade de descansar tão extrema eu me demiti em fev desse ano, muito por não saber descansar e não parar, estava agindo com se meu corpo fosse uma máquina. Espero que você consiga descansar nesses respiros da rotina louca do nosso dia a dia <3