Chá entre um fungo
Ano passado, terminei de ler um livro que me perseguiu por alguns bons anos, começando como um PDF no meu falecido computador (e contemplado entre crises de desemprego) até, eventualmente, eu estar empregado e apto a pagar por sua versão física. “The Anime Machine”, do Thomas Lamarre, apareceu em uma época em que procurava um material mais teórico sobre animação, menos apoiado em quntos animes diferentes o autor viu e mais em uma análise realmente acadêmica. Encontrei muito mais do que pedi: citei ele em uma conversa sobre ecofuturismo, indiquei alguns capítulos pra uma amiga psicanalista — tem pelo menos uns 4 sobre Lacan e Zizek —, fora toda a parte sobre cinema e animação.
O que me faz tirar a poeira da newsletter em 2025 é uma análise presente mais ou menos em seu meio; uma semente que vem sendo germinada por diversos desgostos e sendo inchada pelo que identifico em comum sobre eles — a definição do otaku. O mundo é dos otakus, os fascistas são otakus e quem não é fascista também, apenas com outra fixação que não o fim do mundo. Quem está online o suficiente pra ler esse texto, infelizmente, é otaku. A definição que me faz generalizar tanto sem nenhun medo é a seguinte (sem entrar em tantos detalhes): no cinema animado japonês, que começou como propaganda de guerra, se alcançou eventualmente um status de narrativa — uma relação entre personagem e pessoa baseado em sua trajetória, todos os minutos daquele universo contemplados como um só objeto de observação. Eventualmente, tendo EVA como um grande expoente, surgem os otakus: criaturas especializadas numa mídia, especialmente em um momento de tal mídia, cuja relação passa a ser de desmonte e reconstrução; um orgulho baseado em quantas partes diferentes consegue-se destrinchar um segundo, um milisegundo, cienência quântica e infinita, tranversal a linha do tempo.
Eu penso demais nessa hipótese. Não só por, até o momento, compreendê-la como precisa — eu enxergo ela em tudo, especialmente em mim. Minha experiência no tempo presente é a de um ser que constantemente se desmonta e se percebe desmontado, sendo cada peça uma interação digital diferente que compõe um novo eu, com peças que ofereço e outras que tendo esconder, e muitas que sequer imagino estarem sendo analisadas. E não para por ai: a grande maioria das pessoas que conheço hoje não navegam comigo na correnteza do tempo, mas chegam desmontadas em blocos específicos de tweets, fotos, posts, stories, likes; pequenos encaixes que me forçam a me especializar ao invés de conhecer, montar ao invés de absorver.
O olhar fora do tempo do digital tem esse efeito em mim, pelo menos. A tridimensionalidade de uma narrativa perde espaço pra pílulas montadas e remontadas, um imagético explodido, como o texto original referencia. Claro que não precisa ser assim, imagino que alguns leitores tenham reações contrárias a essa estrutura diferente que me aflinge e assim me vê preso em um cubículo imaginário e minúsculo, mas essa seria apenas mais uma peça sobre mim, separada e individual.
E os cogumelos? Apesar do teor negativo dessas divagações, o que me motivou a escrever sobre isso foi a sensação sempre maravilhosa de, um dia, poder ser diferente; conseguir enxergar a vida como um cogumelo, ou qualquer fungo. Eles não enxergam no sentido literal, mas me pergunto se existe algum fluxo ali. Não importa, minha inveja desse reino terá sim algumas projeções poéticas, mas não será inteiramente mentiroso. Recentemente, vi um documentário que revelava uma rede subterrânea de fungos que é usada pelas árvores para comunicação. Suas raízes não estão todas interligadas, mas esses fungos fazem esse papel intermediário. São milhares de quilômetros do mesmo indivíduo, ininterrupto, cuja forma não sofre de nenhuma desconstrução existencial. Tanto se fala sobre individualidade, auto-obsessão, e ao mesmo tempo nunca estivemos tão perto de uma rede infinitamente conectada e transmitindo informações sobre tudo, em forma de amores, de guerras, com propósitos e justiças e desperdícios de tempo.
A vida nessa era digital me da uma sensação de peças empilhadas em uma fina membrana, que por sua vez se monta com outras inúmeras membranas sem nunca formar nada, infinidades de conteúdo definidos por esses limites. Quando estou na presença de alguém, me sinto um pouco mais fungo: eu e quem quer que seja, duas pessoas inegavelmente participantes da humanidade, produto de relações no fluxo do tempo. Me lembro dos meus dias de cozinheiro relapso e de alguns fungos que apareciam na comida esquecida no fogão, coloridos, diferentes, todos fungos, sem nenhum limite entre eles e iguais aos meus olhos. Uma relação, acredito, pode ser como um fungo, com seu próprio tempo e impossível de se desmontar de sua complexidade, alheio ao desejo de quem sente que precisa ou rejeita sua chegada. São as únicas que consigo ter inteiro, de qulquer forma.
Só posso absolutamente reverenciar quem consegue colocar em palavras tantos sentimentos, percepcões, sensações...