A vida de um morador da zona sul do Rio de Janeiro é, invariavelmente, atravessada pelas linhas 584 e 583, em suas iterações presentes e em suas vidas passadas (569, 570, etc..). Não só não fujo a regra, como nossa relação se transformou ao longo dos anos: primeiro, o 584 me levava até o Rio Sul, onde saltava para chegar na UFRJ, no campus da Praia Vermelha. O 583 me fazia a gentileza do retorno, às vezes dividido com uma amiga, às vezes sozinho, sempre em pé. Isso durou alguns anos, até que troquei de faculdade - passei a estudar na PUC-Rio, agora na Gávea. Os papéis se inverteram: pegava o 583 pela manhã (seus caminhos divergem no viaduto da Pinheiro Machado, um indo pelo Flamengo e o outro seguindo pela rua, rumo a Botafogo) e depois pegava o 584 para voltar, geralmente em frente ao Jockey. Foram 4 anos totais (6 de faculdade, com 2 perdidos na pandemia) fazendo esse trajeto.
Quis o destino que, anos depois de formado,a dobradinha retornasse a minha vida com o 584 pela manhã e o 583 a noite, indo e voltando de Copacabana. O causo a seguir aconteceu na última sexta-feira, logo na semana que sacramentei minha saída do bairro e da Zona Sul. Essas linhas dificilmente farão sentido novamente, então deixo como testemunho a celebração desse trajeto através do evento descrito:
Quando subi no ônibus, por volta de 18h20, não havia nada de diferente. Imediatamente identifiquei o motorista, um dos mais simpáticos da linha, e fiz a leitura instantânea de quais assentos estavam disponíveis. Minha preferência sempre foi pela janela, mas desde que passei a ler no ônibus, percebi que não faz muita diferença. O importante é ler. Acabei sentando em um mais ou menos na metade, no corredor. Onde subo, geralmente, ainda tem uns poucos lugares disponíveis, mas também não é raro eu acabar indo em pé, tentando adivinhar quem dos sentados vai sair mais cedo. Não foi o caso, sentei, e comecei a leitura.
Outro hábito inexplicável é o de observar as pessoas que sobem em cada ponto. Não sei o propósito — não espero ninguém — mas é comum que isso me tire momentaneamente na leitura para uma observação dos novos companheiros de viagem. Perto da Avenida Princesa Isabel, as estrelas da noite entram em cena: duas senhoras, aparentemente estrangeiras, atravessam a catraca e começam a andar no corredor do ônibus. A coragem em desfilar pelo chão de um veículo em movimento na Avenida Nossa Senhora de Copacabana já evidenciava a falta de familiaridade com o transporte público brasileiro. Não era o suficiente para o destino, que interveio com uma fechada rotineira de algum motorista psicótico, o que causou uma leve freada pelo nosso piloto. A senhora da frente perdeu o equilíbrio e como um dominó de meia idade começou a andar para trás, levando junto a grande Vítima (chamaremos assim por motivos de clareza e ironia), que deu uns 10 passos antes de despencar com a cabeça direto na roleta. Eu estava sentado na primeira fila desse espetáculo gravitacional, e observei, com o tempo comprimido, a eternidade da cena que resultou em uma mulher aparentemente desacordada no chão do ônibus 583.
Se estivéssemos em uma peça, seria o fim do primeiro ato. Encostamos logo à frente; os passageiros imediatamente a cercaram para prestar assistência e o motorista desceu, depois entrou pela porta dos fundos, como um jogador que bate o escanteio e corre pra cabecear, e se ajoelhou ao lado da Vítima, que lentamente levantava. O choque da situação evocou um espírito democrático e deliberativo em nós, os observadores, e começaram uma série de acusações passivo-agressivas para com os envolvidos: o motorista não pode freiar assim, a mulher estava em pé, terminando em uma acusação de “pressão baixa” da Vítima por parte de uma passageira — um instante que resultou na desgraça presente, percebido apenas por ela, mas não descartado pelo resto do ônibus.
Uma vez que a Vítima estava de pé e acordada, o ar foi enchido pela resignação da normalidade. Ela sairia do ônibus, uma ambulância seria chamada, e seguiríamos a viagem. “Coisa de 10 minutos”, pensei. O motorista desceu e não voltou mais. Passados alguns momentos, quem estava do lado do ônibus virado pra rua levantou e foi observar. Algo estava sendo discutido entre a Vítima, suas ajudantes, e o motorista. A impaciência tomou conta: uma senhora de mais ou menos 65 anos começou a convocar intérpretes de inglês (a Vítima falava espanhol), suplicando para que alguma alma fosse ajudar o pobre homem. Me prontifiquei e cheguei a ir caminhar para descer, quando lembrei do idioma verdadeiro delas e comuniquei o equívoco. A senhora me olhou, não respondeu nada do que falei, e apenas repetiu a súplica, agora pedindo intérpretes nessa nova língua. Uma jovem que viajava sentada no banco em frente ao meu foi quem resolveu intervir. Ela não falava nada de espanhol, mas desceu mesmo assim, com o Google Tradutor aberto no celular. Um esforço fútil, deliberamos. Qual a dificuldade? todo brasileiro entende alguém falando em espanhol, se necessário. Logo ficou claro: como se fosse um médico dando um prognóstico pós-operatório, nosso guia sobe novamente e com um olhar desolado, crava: “ela está de sacanagem”.
A notícia caiu como uma bomba na moral dos angustiados passageiros. Segundo o motorista, a Vítima se recusou a esperar a ambulância, preferindo ir sozinha ao posto de saúde. Ficou subentendido que ela seria desonesta em seu relato, buscando culpar o condutor por algo de sua própria escolha. A senhora, antes compadecida com a angústia de comunicação falha, se indignou e levantou a hipótese da Vítima ser “uma fã da Lady Gaga que foi pro show e não queria pagar a passagem de volta”. Ninguém confirmou ou negou, e a acusação ficou no ar. Alguns desceram e foram pegar outro carro, já eu não sabia o que fazer pois já havia verificado que o próximo 583 estava a 45 minutos de distância. Depois, pensei: qual minha pressa? Como escreve Cormac Mccarthy, o mundo é de suas testemunhas. Convenci alguns outros passageiros a ficar (acreditava, genuinamente, que era a melhor opção), e seguimos ali.
Com o caminho mais bélico sendo seguido pelo ônibus metafórico, já que o físico seguia estacionado, nos foi informado que o motorista precisaria de nome e número de telefone para se resguardar de um possível processo: se ele fosse acusado de negligência ou má-intenção, seríamos acionados para testemunhar. Confiante no que presenciei, afirmei, categoricamente: “conte comigo”. Imediatamente, passei a me questionar se meus olhos poderiam ser confiados. Minha ânsia por protagonismo e reconhecimento fraterno para com o guia diminuiu, mas a caderneta inflamou os outros passageiros, que passaram a se postar como um tipo de serviço secreto, fiel e organizado. Enquanto ouvíamos essas informações, uma imagem revoltante borbulhou o sangue dos presentes: a Vítima estava indo embora. Adotando a técnica da tartaruga, que anda tão devagar que consegue fugir sempre, ela já havia percorrido aproximadamente 20 metros quando o primeiro grito de “ELA FUGIU!” ecoou pela Nossa Senhora. Um dos passageiros, que havia se encarregado de nos manter informado enquanto estávamos no ônibus, saiu correndo atrás das fugitivas, e o motorista também as alcançou.
Ao retornar, esse passageiro acrescentou outra perspectiva ao caldeirão de teorias: a passageira era chilena, e seu dinheiro “não vale nada lá”, e portanto ela “queria o nosso”. Paralelamente, a "justiça de lá funciona”, enquanto a nossa “é uma bagunça”. Essas afirmações, de alguma forma, formavam um raciocínio irrefutável, que foi prontamente aceito e ecoado pelos presentes. Com o passar do tempo, a impaciência apenas crescia. Alguém teve a ideia de chamar a polícia e “deixar para eles resolverem”. Um ônibus parado, no meio da rua, com dezenas de pessoas reunidas na calçada e um motorista frenético andando pra lá e pra cá: esse cenário não foi o suficiente para os policiais estacionados na esquina se interessarem por nós. O descaso acabou nos unindo ainda mais. Entre xingamentos e especulações, fomos abordados pelo segurança da farmácia, que compartilhou sua experiência com aquela incansável viatura: “mesmo vendo um monte de roubo, eles não saem do lugar”. Concordamos, claro.
O clima não era bom. O cansaço já havia imposto um certo silêncio, erguido em conjunto pela resignação. Um momento contemplativo com a cena bizarra que estávamos presenciando. Mesmo assim, o destino novamente atuou, para que não houvesse dúvidas sobre o gozo da causalidade. Enquanto estávamos todos do lado de fora, com o ônibus completamente vazio, passou uma senhora acenando pra ele. A observei, paralisado. Seu desespero era palpável, a pobre trabalhadora não era nenhuma atleta e mesmo assim passou em passadas largas, perseguindo o cadáver estacionado. Ela alcançou a porta (óbvio), botou um pé no degrau, e finalmente olhou para cima.
Me falta repertório e sensibilidade para relatar a perplexidade com que ela absorveu a imagem da cadeira vazia do motorista. Uma mulher traída pelo seu Deus. Traída pelo seu próprio esforço, inútil, uma vez que a divindade que a conduz para casa estava na nossa frente batendo boca com uma senhora chilena, circunstancialmente golpista, e provavelmente concussionada. Ela olhou ficou uns 15 segundos com o pé no degrau, sem saber se subia — ou melhor, se ia contra o processo natural do retorno. Eventualmente, se juntou a nós e foi atualizada da situação.
Faltavam de 10 a 15 minutos para o próximo 583, e não havia escolha se não esperá-lo. Entraríamos todos pela porta de trás, triunfalmente. A Vítima era atendida dentro da farmácia. Silêncio. Alguns irritados, outros de bom-humor, mas todos no mesmo barco. A senhora que clamou em desespero por um intérprete tentava aliviar a situação, mas em um momento de fraqueza comentou sobre sua necessidade de ir ao banheiro, que foi prontamente indagado com um grito de questionamento: “MIJA ALI DENTRO, UÉ”, se referindo a farmácia, que abrigava nossa algoz. A cor da senhora desapareceu, ela gritou (em sussurros), “FALA BAIXO”, e todos rimos — ela incluída.
O próximo 583 chegou, como um barco de resgate em uma ilha deserta. O motorista lamentou a longa noite a frente e compartilhou conosco que já havia ajudado um senhor ferido, naquela mesma manhã, antes do trabalho. “Pelo menos você ganhou 2 pontos pro céu hoje”, disse seu escudeiro. “Porra, só 2?” indagou.
Foi a última coisa que vimos dele. Subimos, o deixando para trás, e seguimos viagem em silêncio, novamente estranhos um para o outro. Um por um, saltamos em nosso destino, para nunca mais ver a Vítima, uma estrangeira não no Brasil, mas no 583 — esse sim, nosso pé de terra em comum na rotina de um trabalhador em Copacabana. Que venha a próxima senhora, o próximo ônibus, e o próximo caminho.